Empreender é refazer caminhos

Entre a sobrevivência e o futuro, o povo preto sempre empreendeu — muito antes de o neoliberalismo transformar a luta em discurso de mérito.

Por Márcio Madeira

Antes que o mundo dissesse “seja empreendedor”, nós já éramos.
Quando o Estado negou terra, escola e salário, o povo preto respondeu com trabalho e invenção. Foi nas mãos das baianas do acarajé, das doceiras de tabuleiro, das costureiras que vestiam a vizinhança, que o verbo empreender ganhou corpo e sentido.

Nossas mães e avós não abriram startups — abriram caminhos.
Com farinha, tecido e fé, elas transformaram o pouco em sustento, e o sustento em cultura. Foram elas que ensinaram o país a girar a roda da economia quando o sistema lhes fechava as portas.
O que hoje chamam de “empreender” nós chamamos de sobreviver com dignidade.

Como lembram Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, a mulher negra sempre foi o centro desse movimento — unindo trabalho, cuidado e inteligência ancestral.
E como ensina Silvio Almeida, a resistência preta é uma resposta orgânica ao racismo: um modo de reorganizar o mundo quando ele insiste em nos excluir.

Empreender, portanto, não é reproduzir o discurso neoliberal da meritocracia — é subvertê-lo.
É dizer: “não nascemos para competir, mas para existir, criar e compartilhar.”
Nosso lucro é o laço, nosso investimento é o outro.

Cada tabuleiro, cada agulha, cada receita é um gesto político.
Um ato de continuidade de quem aprendeu a transformar dor em possibilidade, e ausência em projeto.
Empreender é, para nós, refazer caminhos — e lembrar ao país que a economia preta sempre existiu, pulsando nas ruas, nas feiras, nas cozinhas, nas rodas e nos quintais.

Este texto tem publicação simultânea no portal Coisas de Gente Preta e no site de empreendedoras coordenado por Márcio Madeira, com variações de enfoque conforme o público de cada espaço.

Márcio Madeira é fundador do portal Coisas de Gente Preta, coordenador do Espaço de Capacitação Márcio Madeira (SCMP) e articulador do canal do Instituto Coisas de Gente Preta. Foi presidente do IPCN e vice-presidente do CONDEDE/Rio. Atualmente, é Presidente do PCN — Partido da Causa Negra, e dedica-se à valorização das práticas comunitárias e à visibilidade do trabalho de profissionais e empreendedores pretos no Rio de Janeiro.

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