A Anulação do Homem Preto em uma Sociedade de Homens Brancos
A anulação do homem preto não é um acaso, mas um projeto historicamente elaborado e meticulosamente sustentado. Desde o momento em que corpos negros foram transformados em mercadoria, ergueu-se uma estrutura de poder que, ao negar-lhes humanidade, também buscou retirar-lhes a voz, o pensamento e a possibilidade de ser sujeito de sua própria história.
Em uma sociedade construída sob a centralidade da branquitude, o homem preto foi sistematicamente deslocado de seu lugar de criador, provedor e pensador. O espaço público o reconhece apenas em papéis delimitados — o atleta, o serviçal, o corpo desejado ou temido —, mas raramente o acolhe como formulador, gestor ou intelectual. Essa seletividade da presença é o reflexo mais cruel da anulação: permitir que o corpo exista, mas não o pensamento; permitir a imagem, mas não a voz.
A herança colonial permanece viva nas instituições e na cultura. O racismo não opera apenas pela exclusão, mas também pela assimilação controlada — concedendo aparente inclusão, enquanto preserva os limites da subalternidade. Assim, o homem preto que ascende socialmente é frequentemente tratado como exceção, e não como parte de um coletivo que reivindica seu direito à igualdade real.
No campo simbólico, a anulação assume outras formas. É a ausência de referências negras nos currículos escolares, é o apagamento da contribuição africana na formação do país, é a recusa em reconhecer o negro como produtor de conhecimento e de civilização. É o epistemicídio que ainda molda as narrativas, ditando quem pode falar e de que maneira.
Do ponto de vista psicológico, a consequência é devastadora. Gera-se uma guerra interna entre o desejo de ser reconhecido e a necessidade de sobreviver. O homem preto é pressionado a se adaptar, a conter sua voz, seu corpo e seus afetos para não ser visto como ameaça. A sociedade branca o quer presente, mas contido; visível, mas silencioso.
Denunciar essa anulação é um gesto de coragem e também de reconstrução. Porque, embora o sistema tenha investido séculos em negar sua humanidade, o homem preto segue de pé — criando, pensando, educando, resistindo. Cada gesto de afirmação, cada espaço ocupado, cada palavra escrita é uma reconfiguração da história.
Reverter a anulação significa devolver à comunidade negra o direito de ser autora de seu próprio destino. E isso não se faz por concessão, mas por movimento, consciência e ocupação.
A anulação é um projeto. A reconstrução também pode ser.
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Márcio Madeira ∴ Responsável pelo Portal Coisas de Gente Preta