Corpos Negros, afetos negados
O corpo negro carrega marcas que não se limitam à pele. Carrega séculos de estigmas criados no período escravocrata e que ainda hoje moldam o imaginário social. Esses estereótipos transformaram homens e mulheres pretos em fetiche, em objeto, em pura disponibilidade.
No caso da mulher negra, a imagem da “mulata sensual” atravessou a história. Vista como corpo para satisfazer desejos, mas raramente como alguém para amar, casar ou construir família. Como destacou Lélia Gonzalez, essa representação reduz a mulher negra a um papel de subalternidade e hipersexualização. Sueli Carneiro reforça que a mulher negra sofre uma dupla opressão — de raça e de gênero — que a coloca, ao mesmo tempo, como alvo de exploração sexual e como mão de obra desvalorizada.
Sarah Baartman, conhecida como a “Vênus Hotentote”, foi uma mulher sul-africana exposta na Europa do século XIX como curiosidade sexual e científica por seu corpo. Seu caso simboliza a origem histórica da fetichização do corpo negro, especialmente feminino, e como mulheres negras foram desumanizadas e objetificadas para sustentar narrativas coloniais. A memória de Sarah Baartman nos lembra que a hipersexualização não é natural, mas uma construção racista que atravessa séculos e ainda impacta homens e mulheres negros hoje.
Com os homens negros, a lógica se repete em outros contornos. O “negão” é associado à força física, à virilidade exagerada e ao desempenho sexual compulsório. Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, analisa como o corpo do homem negro é frequentemente visto a partir da animalização e do medo, oscilando entre objeto de desejo e alvo de criminalização.
Esses estereótipos não são inofensivos. Eles influenciam relações afetivas, sustentam desigualdades e reforçam a desumanização que a população negra enfrenta. bell hooks nos lembra que a libertação dos corpos passa por romper com essas narrativas que reduzem o ser negro a um fetiche. Quando não somos reconhecidos como sujeitos de afeto, cuidado e pensamento, mas apenas como corpos disponíveis, a violência simbólica se soma à violência material.
Romper com essa lógica é urgente. É afirmar que o corpo negro não é mercadoria, não é fetiche, não é ameaça. É corpo que sente, que pensa, que cria e que ama. É corpo sagrado, herdeiro de histórias de resistência e de beleza que nenhuma caricatura colonial pode apagar.
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Referências
•FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas.
•GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano.
•CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo.
•HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação.
Marcio Madeira
Instituto Coisas de Gente Preta