A fé como tática de poder

Eduardo Paes e Cláudio Castro recorreram à mesma fórmula: instrumentalizar a fé ao lado de Malafaia, em nome do lema “Deus, Pátria e Família.” Esse gesto, longe de ser inocente, precisa ser lido como movimento estratégico de poder.

Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa

Enquanto milhares de fiéis se mobilizam anualmente na Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, reafirmando seu compromisso com a diversidade de crenças e o respeito às tradições, Paes e Castro permanecem ausentes. Essa ausência evidencia que seu engajamento religioso é estritamente simbólico, voltado apenas para impressionar setores conservadores ao lado de Malafaia, e não para apoiar a fé genuína do povo ou defender seus direitos religiosos.

O evento, que é coordenado pelo CEAP (Centro de Articulação de População Marginalizada) e pelo Professor Doutor Babalorixá Ivanir dos Santos, reafirma a importância da mobilização coletiva em torno da liberdade religiosa. Sob sua liderança e com o apoio de diversas instituições, a caminhada se consolidou como um espaço de resistência, diálogo e valorização das tradições de matriz africana, projetando para a sociedade a força da diversidade e da convivência pacífica entre as crenças.

A caminhada contou com a presença de lideranças de diferentes matizes religiosas e sociais, entre elas o Pastor Cléber Lucas, o Pastor Otoni de Paula e o Padre GG. Essa composição plural evidenciou que o ensino da representatividade vai além do discurso: é no gesto coletivo, no encontro entre diferenças, que a mensagem se torna mais forte e transformadora.

Estratégia calculada

Em A Arte da Guerra, Sun Tzu ensina que “toda guerra é baseada no engano”¹. Paes e Castro, ao assumirem um discurso religioso, mascaram suas contradições políticas e sociais para se apresentarem como líderes próximos ao povo.

No entanto, a justiça social de Cristo, segundo os evangelhos, vai muito além das grandes sinagogas e dos templos luxuosos. Jesus advertiu contra os que aparentam santidade mas negam a prática da justiça e da misericórdia, chamando-os de “sepulcros caiados” — belos por fora, mas cheios de corrupção por dentro (Mateus 23:27-28)².

Essa passagem mostra que a verdadeira espiritualidade não se mede pelo espetáculo religioso, mas pela prática concreta de amor, solidariedade e defesa dos marginalizados. É justamente essa dimensão que se perde quando a fé é transformada em estratégia de poder político.

A aparência do príncipe

Maquiavel, em O Príncipe, recomenda que o governante “não precisa ser virtuoso, mas parecer virtuoso”³. O uso do púlpito religioso e da simbologia cristã é justamente esse jogo de aparência: a encenação da fé serve para fortalecer a imagem de governantes, ainda que suas práticas não dialoguem com os princípios que proclamam.

Nesse cenário, Malafaia desempenha papel central. Ele se posiciona duramente contra ONGs, associações comunitárias e o próprio terceiro setor — justamente os espaços onde a solidariedade do Cristo é vivida de forma concreta, conforme os evangelhos (Mateus 25:35-40)⁴. Ou seja, combate aqueles que dão de comer, de beber, que acolhem e cuidam, ao mesmo tempo em que se apresenta como porta-voz da moral cristã.

Leis do poder em ação

Robert Greene, em As 48 Leis do Poder, alerta que uma das formas de manter domínio é “controlar as opções”⁵. Paes e Castro oferecem ao público conservador uma escolha aparente: alinhar-se a eles como defensores da moral religiosa, ou cair no campo do “inimigo”. Essa manipulação da fé limita o espaço para alternativas políticas reais.

Instituições inclusivas ou extrativas?

Em Por que as Nações Fracassam, Daron Acemoglu e James Robinson demonstram que sociedades prosperam quando suas instituições são inclusivas e colapsam quando elites as capturam para si⁶. Ao se aliarem a Malafaia, prefeito e governador reforçam práticas extrativas: a fé popular é explorada como instrumento de poder, e não como espaço de emancipação.

Uma leitura negra do poder

Aqui, cabe recuperar o pensamento de Achille Mbembe, que em Necropolítica nos mostra como o poder moderno se organiza em torno da administração da vida e da morte⁷. Ao instrumentalizar a fé e negar políticas efetivas para a população preta, Paes e Castro reafirmam uma necropolítica que marginaliza, controla e descarta vidas negras, ao mesmo tempo em que as usa como espetáculo para legitimar sua autoridade.

A aproximação de Silas Malafaia

A aproximação do Pastor Silas Malafaia com determinados governantes nos faz entender uma tentativa de instrumentalizar a fé em benefício político, usando estratégias que lembram esperteza. A Bíblia adverte claramente: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (Mateus 6:24). Observa-se que esses dois já se organizaram em seus grupos visando a governança do Rio nas próximas eleições, e que Malafaia mesmo já declarou ter poder de manipulação de votos entre seus fiéis. Essa reflexão nos lembra que a espiritualidade genuína não se presta a jogos de poder.

Conclusão

A política que transforma espiritualidade em moeda eleitoral não nos serve. Se a fé é usada como estratégia de poder, nossa resposta precisa ser transformar a cultura preta e a ancestralidade em estratégia de emancipação e poder político real. Só assim garantiremos que nossas vidas e tradições não sejam apenas instrumentos na mão de governantes, mas caminhos para justiça e liberdade.

O evento, por sua vez, mostrou-se lindo, harmonioso e profundamente significativo, provando que o amor e o respeito continuam sendo o melhor caminho para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.


📌 Editorial do Instituto Coisas de Gente Preta
Por Márcio Madeira, coordenador do portal

Referências
1. SUN TZU. A Arte da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
2. A BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de Mateus, capítulo 23, versículos 27-28.
3. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2017.
4. A BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de Mateus, capítulo 25, versículos 35-40.
5. GREENE, Robert. As 48 Leis do Poder. Rio de Janeiro: Record, 2000.
6. ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por que as Nações Fracassam. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
7. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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